Capítulo 2 - Este Mundo Tenebroso I


Olá amigos, tdo bom?
Bem, continuando com o Livro Este Mundo Tenebroso, chega o Capítulo 2 para vocês acompanharem ok?

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Marshall entrou depressa no porão da Delegacia de Ashton e imediatamente desejou poder desligar o 
nariz e os ouvidos. Além da porta cheia de grades que levava à ala das celas, os ruídos e odores que emanavam das celas não diferiam muito dos do parque de diversões na noite anterior. Ao vir para cá, ele havia notado como as ruas estavam quietas esta manhã. Não era de admirar — todo o barulho tinha vindo parar dentro dessa meia-dúzia de celas de pintura descascando, embutidas em concreto frio e ressonante. Aqui estavam todos os drogados, vândalos, desordeiros, bêbados e vagabundos que a polícia tinha podido arrebanhar da face da cidade, recolhidos no que mais parecia um zoológico superlotado. Alguns estavam transformando aquilo numa festa, jogando pôquer por cigarros, usando cartas todas marcadas de dedos e tentando sobrepujar os outros nas narrativas de aventuras ilícitas. Perto do fim das celas, um bando de jovens machos dirigia comentários obscenos a uma gaiolada de prostitutas que não tinham um lugar melhor para serem trancafiadas. 
Outros simplesmente se amontoavam pelos cantos em estado de embriaguez ou afundados em depressão, ou as duas coisas. Os remanescentes olhavam-nos fixamente por detrás das grades, fazendo comentários maliciosos, pedindo ninharias. Ele ficou contente por ter deixado Kate na entrada. Jimmy Dunlop, o novo assistente do Delegado, estava estacionado fielmente à mesa da guarda, preenchendo formulários e bebendo café forte. 
— Ei, Sr. Hogan — disse ele — o senhor veio logo. 
— Eu não podia esperar... e não vou esperar! — disse, brusca mente. Não se estava sentindo bem. Este havia sido o seu primeiro Festival, e só isso já era um mal em si, mas ele jamais esperou, jamais sonhou com um tal prolongamento da agonia. Qual uma torre, ele se elevou à frente da mesa, sua robusta figura inclinando-se para a frente a fim de acentuar a sua impaciência. 
— E então? — insistiu. 
— Hummm? 
— Estou aqui para tirar a minha repórter da cadeia. 
— Claro, sei disso. Trouxe a permissão? 
— Olhe aqui. Acabei de pagar aqueles engraçadinhos lá em cima. Eles disseram que ligariam aqui para baixo. 
— Bem. .. não fiquei sabendo de nada, e preciso da autorização. 
— Jimmy.. . 
— O que é? 
— Seu telefone está fora do gancho. 
— Oh. .. 
Marshal colocou o telefone à frente do guarda com tanta força que fez o telefone tilintar de dor. 
— Ligue para eles. 
Marshall endireitou-se, viu Jimmy discar o número errado, discar novamente, tentar completar a ligação. Ele combina bem com o resto da cidade, pensou Marshall, passando nervosamente os dedos pelos cabelos vermelhos que começavam a ficar grisalhos. Ora, claro que era uma cidade simpática. Engraçadinha, talvez um tanto estúpida, meio como um garotão desajeitado que está sempre se metendo em encrencas. 
As coisas não eram tão melhores assim na cidade grande, tentou lembrar a si mesmo. 
— Ah, Sr. Hogan — disse Jimmy, com a mão sobre o bocal — com quem foi que o senhor falou? 
— Kinney. 
— Sargento Kinney, por favor. Marshall estava impaciente. 
— Passe-me a chave da porta. Quero que ela saiba que estou aqui. Jimmy deu-lhe a chave. Já havia discutido com Marshall Hogan antes. Uma onda de fingidas boas-vindas jorrou das celas, acompanhada de tocos de cigarros e o som de marchas assobiadas enquanto ele passava. Ele não perdeu tempo em achar a cela que procurava. — Muito bem, Krueger, sei que você está aí dentro! 
— Venha pegar-me, Hogan — veio a resposta, dada por uma voz feminina desesperada e algo ultrajada
lá dos fundos. 
— Bem, estenda o braço, acene para mim, faça alguma coisa! Uma mão apareceu entre os corpos e 
grades e acenou-lhe com desespero. Ele foi até lá, deu-lhe uma pancadinha na palma, e achou-se face a face com Berenice Krueger, detenta, sua melhor colunista e repórter. Ela era uma jovem e atraente mulher de seus vinte e cinco ou vinte e seis anos, com cabelos castanhos em desordem e óculos grandes, de aro de 
metal, agora manchados. Ela tinha obviamente passado uma noite difícil e no momento estava na companhia de pelo menos uma dúzia de mulheres, algumas mais velhas, algumas chocantemente jovens, a maioria 
prostitutas apanhadas pelo camburão da polícia. Marshall não sabia se ria ou cuspia. 
— Não vou poupar palavras... você está com uma cara horrorosa — disse ele. 
— Está apenas de acordo com a minha profissão. Sou uma prostituta agora. 
— É sim, é sim, uma de nós — entoou uma moça rechonchuda. Marshall fez uma careta e abanou a cabeça. 
— Que tipo de perguntas você andou fazendo por lá? 
— No momento, nenhuma piada tem graça. Nenhuma história do que aconteceu na noite passada é engraçada. Não estou rindo, estou fervendo. Aquele serviço era um insulto em primeiro lugar. 
— Olhe, alguém tinha de escrever sobre a folia. 
— Mas nós acertamos em cheio no nosso prognóstico; certamente não havia nada de novo debaixo do sol, nem da lua, por assim dizer. 
— Você foi presa — ofereceu ele. 
— Por querer agarrar o leitor com uma isca escandalosa. O que mais havia para se escrever? 
— Vamos, leia para mim o que escreveu. Uma espanhola no fundo da cela ofereceu: 
— Ela tentou fazer negócio usando o truque errado — e todas as celas arrebentaram em gargalhadas e vaias. 
— Exijo ser posta em liberdade! — disse Berenice, furiosa. — E você pisou em cola? Faça algo. 
— Jimmy está telefonando a Kinney. Paguei sua fiança. Vamos tirá-la daqui. 
Berenice esperou um pouco até conseguir esfriar e então relatou: 
— Respondendo às suas perguntas, eu estava fazendo entrevistas locais, tentando obter algumas boas fotos, boas declarações, boa qualquer coisa. Assumo que Nancy e Rosie aqui — ela olhou em direção a duas 
jovens que poderiam ter sido gêmeas, e elas sorriram para Marshall — ficaram querendo saber o que eu estava fazendo, circunavegando constantemente pela área do carnaval com cara de perdida. Elas puxaram 
uma conversa que realmente não levou a nada do ponto de vista de notícias, mas que nos meteu as três em 
apuros quando Nancy quis passar a cantada num tira disfarçado e acabamos indo parar em cana todas juntas. 
— Acho que ela se sairia bem na profissão — brincou Nancy, enquanto Rosie fingia que lhe dava um 
tabefe. Marshall perguntou: 
— E você não lhe mostrou sua identidade, sua carteira de jornalista? — Ele nem me deu chance! Eu lhe disse quem era. 
— Bem, ele a ouviu? — perguntou Marshall às moças: — Ele ouviu o que ela disse? Elas simplesmente deram de ombros, mas Berenice engrenou a voz a toda e gritou: 
— Este tom é alto o bastante para você? Foi o que usei ontem à noite enquanto ele me botava as algemas! 
— Bem-vinda a Ashton. 
— Vou tomar a insígnia dele! 
— Apenas fará seu peito ficar verde. Hogan ergueu a mão a fim de impedir outra explosão. 
— Ei, olhe, não vale a chateação... 
— Existem outras escolas de pensamento! 
— Berenice... 
— Tenho umas coisas que adoraria ver impressas, com quatro colunas de largura, tudo acerca do Supertira 
e daquele cretino paradão que é o chefe! E por falar nisso, onde está ele? 
— Quem, você está falando do Brummel? 
— Ele tem um jeitinho muito conveniente de desaparecer, sabia? Ele sabe quem sou. Onde está ele? 
— Não sei. Não consegui entrar em contato com ele hoje de manhã. 
— E ele me deu as costas ontem à noite! 
— Do que você está falando? Subitamente, ela fechou a boca, mas Marshall leu seu rosto tão claramente quanto se ali estivesse escrito: Não se esqueça de me perguntar mais tarde. Naquele exato momento, a grande porta se abriu e Jimmy Dunlop entrou. 
— Falaremos a respeito depois — disse Marshall. 
— Tudo certo, Jimmy? Jimmy estava intimidado demais pelos berros, exigências, vaias e apupos vindos das gaiolas para responder de pronto. Mas uma coisa era certa: ele tinha a chave da cela na mão, e isso era suficiente. 
— Afastem-se da porta, por favor — ordenou ele. 
— Ei, quando é que a sua voz vai mudar? — foi característica das respostas que obteve. Mas elas se 
afastaram da porta. Jimmy a abriu, Berenice saiu rapidamente, e ele bateu a porta e a trancou atrás dela. 
— Muito bem — disse ele — você está livre para sair sob fiança. Será notificada sobre a data em que terá 
de comparecer perante o juiz. 
— Quero apenas que me devolva minha bolsa, minha carteira de jornalista, meu bloco de anotações e 
minha máquina fotográfica! — sibilou a moça, dirigindo-se à porta. Kate Hogan, uma ruiva séria e esbelta, havia tentado aproveitar bem o tempo enquanto esperava lá em cima, no vestíbulo do tribunal. Havia muito o que observar aqui depois do Festival, embora certamente nada que fosse agradável: alguns miseráveis sendo escoltados ou arrastados para dentro, lutando contra as algemas o tempo todo e despejando obscenidades; muitos outros estavam sendo soltos nessa hora após uma noite passada atrás das grades. Parecia quase a mudança de turnos em alguma fábrica bizarra, o primeiro turno saindo, algo desapontado, seus minguados pertences ainda em saquinhos de papel, e o segundo turno entrando, todo manietado e indignado. A maioria dos policiais era estranha vinda de outras partes, trabalhando horas extras para reforçar a minúscula equipe de Ashton, e não estavam sendo pagos para ser bondosos ou educados. 
A mulher de bochechas caídas sentada à escrivaninha principal tinha dois cigarros esfumaçando no cinzeiro, mas pouco tempo para tirar uma tragada entre o processar de papéis de cada caso que entrava ou 
saía. Pelo que Kate podia ver, a operação toda parecia muito apressada e desleixada. Havia alguns advogados baratos passando os cartões, mas uma noite na cadeia parecia ser o castigo máximo que qualquer uma daquelas pessoas teria de enfrentar, e a única coisa que desejavam agora era sair da cidade em paz. Kate meneou inconscientemente a cabeça. Pensar na pobre Berenice sendo arrebanhada por esse lugar adentro como se fosse ralé. A moça devia estar furiosa. 
Ela sentiu um braço forte mas meigo enlaçá-la, e deixou-se afundar em seu abraço. 
— Humm — disse — isso é o que chamo de mudança agradável. 
— Depois do que tive de ver lá embaixo, preciso de um bálsamo — disse-lhe Marshall. 
Ela colocou o braço em volta dele e o puxou para perto de si. 
— É isto o que acontece todos os anos? — perguntou ela. 
— Não, ouvi dizer que piora cada vez mais —. Kate meneou a cabeça outra vez, e Marshall acrescentou: — Mas o Clarim terá algo a dizer sobre isso. Ashton bem que poderia usar uma mudança de direção; a esta 
altura, eles já deviam estar enxergando isso. 
— Como está Berenice? 
— Ela será um colosso de redatora por uns tempos. Está bem. Sobreviverá. 
— Você vai conversar com alguém a respeito de tudo isso? 
— Alf Brummel não está por aí. Ele é sabido. Mas eu o pegarei mais tarde hoje e verei o que posso fazer. E 
não me importaria de receber meus vinte dólares de volta. 
— Bem, ele deve estar ocupado. Eu detestaria ser o delegado num dia como hoje. 
— Oh, ele detestará o cargo muito mais se isso estiver em meu poder. 
A volta de Berenice de uma noite de encarceramento foi marcada por um semblante carregado e passos secos, batendo com força no linóleo. Ela também carregava um saco de papel, furiosamente rebuscando dentro dele para assegurar-se de que continha todas as suas coisas. Kate estendeu os braços a fim de dar um abraço reconfortante em Berenice. 
— Berenice, como está? 
— Brummel é um nome que logo será lama, o nome do prefeito será estéreo, e não poderei imprimir o 
que o nome daquele tira será. Estou indignada, posso estar constipada e preciso desesperadamente de um 
banho. 
— Olhe — disse Marshall — desconte a raiva na máquina de escrever, dê uns tapas nas moscas. Preciso 
dessa história do Festival para a edição de terça-feira. Berenice imediatamente rebuscou os bolsos e puxou para fora um punhado de papel higiênico amassado, colocando-o com força na mão de Marshall. 
— Sua fiel repórter, sempre a postos — disse ela. 
— O que mais havia para fazer lá além de olhar a parede descascar e esperar em fila a minha vez de usar o vaso sanitário? Desconfio que vai achar toda a reportagem bem descritiva, e dei um jeito de inserir algumas 
entrevistas in loco com umas prostitutas presas para dar mais sabor. Quem sabe? Talvez uma reportagem dessas faça esta cidade perguntar-se onde chegou. 
— Alguma foto? — perguntou Marshall. A moça entregou-lhe um rolo de filme. 
— Você deve encontrar algo aí que possa usar. Ainda estou com filme na máquina mas esse é de interesse pessoal para mim. Marshall sorriu. Estava bem impressionado. 
— Tire folga hoje, por minha conta. As coisas parecerão melhores amanhã. 
— Talvez até lá eu já tenha recobrado minha objetividade profissional. 
— Vai cheirar melhor. 
— Marshall! — disse Kate. 
— Tudo bem — disse Berenice. — Ele me joga esse tipo de coisa o tempo todo. 
A essa altura, ela havia apanhado a bolsa, a carteira de jornalista e a máquina e jogou vingativamente o saco da papel amassado numa lata delixo, perguntando: 
— E como está a situação de transporte? 
— Kate trouxe o seu carro — explicou Marshall. — Se você lhe desse uma carona até a casa, seria melhor 
para mim. Tenho de ver se consigo resolver as coisas lá no jornal e depois vou tentar encontrar Brummel. 
Os pensamentos de Berenice engataram prontamente nessa marcha. 
— Brummel, certo! Tenho de falar com você. Ela começou a arrastar Marshall para o lado antes que este pudesse dizer sim ou não, e ele conseguiu apenas dar uma olhada em Kate pedindo desculpas 
antes que Berenice e ele dobrassem um canto e ficassem fora de vista, perto dos banheiros. 
Berenice abaixou a voz. 
— Se você vai falar com o Delegado Brummel hoje, quero que fique sabendo o que eu sei. 
— Além do óbvio? 
— Que ele é um ordinário, um covarde e um cretino? Sim, além disso tudo. São pedaços, observações
desconexas, mas talvez venham a ter sentido algum dia. Você disse que eu sou boa para enxergar detalhes. Acho que vi o seu pastor e ele juntos na folia ontem à noite. 
— O pastor Young? 
— A Igreja Cristã Unida de Ashton, certo? Presidente do corpo local de pastores, endossa tolerância religiosa e condena a crueldade para com animais. 
— Sim, isso mesmo. 
— Mas Brummel nem vai à sua igreja, vai? 
— Não, ele vai àquela igreja pequenina. 
— Eles estavam lá atrás da barraca dos dardos, em quase total escuridão, com três outras pessoas, uma 
loira, um velhote baixote e atarracado, e uma víbora que mais parecia um fantasma, de cabelos pretos e óculos escuros. Óculos escuros de noite! Marshall ainda não estava impressionado. 
Ela continuou como se estivesse tentando vender-lhe algo. 
— Acho que cometi um pecado capital contra eles: tirei uma foto, e, pelo que pude perceber, não gostaram nada. Brummel ficou bem nervoso e, ao falar comigo, gaguejava. Young pediu-me em tom firme que saísse, 
dizendo: “Esta é uma reunião particular.” O gorducho deu-me as costas e a mulher fantasmagórica ficou 
simplesmente a olhar para mim com a boca aberta. 
— Você já pensou em como encarará tudo isso depois de um bom banho e uma noite decente de sono? 
— Espere eu terminar e então saberemos, está bem? Ora, foi logo depois daquele pequeno incidente que
Nancy e Rosie se agarraram a mim. O que quero dizer é que não fui eu que as procurei, elas me procuraram, e logo a seguir fui presa e minha máquina confiscada. Ela percebeu que não estava conseguindo fazer que ele compreendesse. Ele olhava impaciente ao redor,o corpo já inclinado de volta na direção do vestíbulo. 
— Está bem, está bem, só mais uma coisa — disse ela, tentando segurá-lo ali. — Brummel estava lá, Marshall. Ele viu tudo. 
— Tudo o quê? 
— Eu ser presa! Eu estava tentando explicar quem era ao tira, estava tentando mostrar-lhe minha carteira
de jornalista, mas ele apenas me tomou a bolsa e a máquina e me algemou. Olhei para o lado da barraca de
dardos de novo e vi Brummel observando tudo. Ele sumiu imediatamente, mas juro que o vi olhando tudo o
que estava acontecendo! Marshall, repassei tudo o que aconteceu ontem à noite, e examinei tudo, e examinei novamente e acho... bem, não sei o que pensar, mas tem de significar alguma coisa. 
— Para completar o cenário — aventurou Marshall 
— o filme da sua máquina sumiu. Berenice examinou a máquina. 
— Oh, ainda está aqui, mas isso não quer dizer nada. Hogan deu um suspiro enquanto considerava o que ela havia dito. 
— Está bem, tire o restante das fotos, e veja se arranja algo que possamos usar, certo? Depois revele o
filme e então veremos. Podemos ir? 
— Será que eu já cometi erros impulsivos, imprudentes, por excesso de confiança como este antes? 
— Claro que sim. 
— Ora, faça-me o favor! Não dá para confiar um pouquinho, pelo menos desta vez? 
— Tentarei fechar os olhos. 
— Sua esposa está esperando. 
— Eu sei, eu sei. 
Marshall não sabia bem o que dizer a Kate quando se reuniram a ela. 
— Desculpe o que aconteceu... — murmurou ele. 
— Então — disse Kate, tentando apanhar o assunto no ponto em que haviam interrompido — 
estávamos falando de condução. Berenice, tive de trazer seu carro aqui para você tê-lo a fim de ir para casa. Se você me deixar em casa... 
— Sim, certo, certo — disse Berenice. 
— E, Marshall, tenho uma porção de coisas que fazer hoje à tarde. Você pode apanhar a Sandy depois da 
aula de psicologia dela? Marshall não disse nada, mas seu rosto mostrava um sonoro não. Kate pegou um molho de chaves na bolsa e o entregou a Berenice. 
— Seu carro está logo ali na esquina, próximo do nosso, no espaço reservado à imprensa. Por que você 
não vai buscá-lo? Berenice entendeu a deixa e saiu. Kate segurou Marshall com um braço amoroso e examinou seu rosto por um momento. 
— Ei, vamos. Tente. Pelo menos uma vez. 
— Mas brigas de galo são ilegais neste estado. 
— Se quiser saber o que penso, ela puxou o pai. 
— Não sei por onde começar — disse ele. 
— Estar lá para apanhá-la significará algo. Aproveite a chance. Enquanto se encaminhavam na 
direção da porta, Marshall, correndo os olhos ao redor, deixou seus instintos examinarem a situação. 
— Você entende esta cidade, Kate? — disse, afinal. 
— É como um tipo de doença. Todo o mundo por aqui está com a mesma moléstia esquisita. 
Uma manhã ensolarada sempre ajuda a fazer com que os problemas da noite anterior pareçam menos 
graves. Era nisso que Hank Busche estava pensando ao abrir a porta de tela da frente da casa e pisar no 
pequeno degrau de concreto. Ele morava numa casa de um quarto, de baixo aluguel, não longe da igreja, uma caixinha branca plantada numa esquina, paredes chanfradas por fora, com pequeno quintal limitado por 
uma cerca viva, e um teto sujo. Não era muita coisa, e às vezes parecia menos ainda, mas era o máximo que o seu salário de pastor lhe permitia. Ora, ele não estavareclamando. Ele e Mary se encontravam confortáveis e abrigados, e a manhã estava linda. 
Esse era o dia em que podiam dormir até mais tarde, e dois litros de leite esperavam na base dos degraus. Ele os apanhou, antecipando o prazer de uma tigela de cereal encharcado em leite, pequena distração
de suas provações e tribulações. Ele já tinha passado por dificuldades antes. Seu pai havia sido pastor enquanto Hank era menino, e os dois haviam atravessado juntos muita glória e muitos apertos, do tipo ligado a plantar igrejas, pastorear, ser pregador itinerante. Hank soubera desde criança que essa era a vida que queria, a forma pela qual desejava servir ao Senhor. Para ele, a igreja sempre fora um lugar muito emocionante onde se trabalhar. Fora emocionante ajudar o pai nos primeiros anos, emocionante passar 
pela faculdade bíblica e depois pelo seminário, e então dois anos como pastor estagiário. Era emocionante 
também agora, mas lembrava a esfuziante sensação que os texanos devem ter sentido no Álamo. Hank tinha 
apenas vinte e seis anos, e geralmente era cheio de ardente entusiasmo; mas este pastorado, o primeiro, 
parecia um lugar difícil de pegar fogo. Alguém havia apagado o último resquício de chama, e ele não sabia o
que pensar a respeito. Por algum motivo, havia sido eleito pastor, o que significava que alguém nessa igreja 
desejava o seu tipo de ministério, mas então havia os outros, aqueles que... tornavam a coisa emocionante. 
Tornavam-na emocionante todas as vezes que ele pregava acerca do arrependimento; tornavam-na 
emocionante todas as vezes que ele confrontava o pecado na comunidade; tornavam-na emocionante todas 
as vezes que ele falava da cruz de Cristo e da mensagem da salvação. Nesse ponto, era mais a fé e a segurança que Hank tinha no fato de estar onde Deus queria que estivesse do que outro fator qualquer que o mantinha firme nos seus propósitos, inabalavelmente em pé, apesar de atacado. Ora, bem, pensou Hank consigo mesmo, pelo menos desfrute a manhã. O Senhor a colocou aqui para você. Tivesse ele entrado de costas na casa sem se voltar, ter-se-ia poupado um insulto, e mantido seu espírito leve. Mas ele se voltou para entrar, e imediatamente viu as imensas letras, negras, escorridas, pichadas na frente da casa: “VOCÊ É UM HOMEM MORTO, ...................” A última palavra era obscena. Os seus olhos viram aquilo, e então correram lentamente de um lado a outro da casa, absorvendo tudo o que viam. Era uma dessas coisas que demora para registrar. Tudo o que ele pôde fazer foi ficar parado um instante, primeiro tentado imaginar quem teria feito aquilo, depois querendo saber por que, e então querendo saber se daria para limpar. Ele olhou mais de perto, tocou as letras com o dedo. Tinha de ter sido feito durante a noite; já estava bem seco. 
— Benzinho — veio de dentro a voz de Mary — você está com a porta aberta. 
— Hummmmm... — foi tudo o que ele disse, não tendo palavra melhor. Realmente não queria que ela 
soubesse. Entrou em casa, fechou com firmeza a porta e reuniu-se a Mary, linda jovem de cabelos longos, para odesjejum: uma tigela de cereal e torradas quentes com manteiga. Aqui, apesar de um céu nublado, Hank tinha um cantinho ensolarado que era a mimosa e brincalhona esposa, com sua risadinha melodiosa. Ela era uma boneca e possuía fibra também. Hank muitas vezes sentia remorsos pelo fato de ela ter de enfrentar as lutas que estavam enfrentando. Afinal, ela podia ter-se casado com um contador ou com um vendedor de seguros, estável e maçante, mas ela lhe fornecia tremendo apoio, sempre presente, sempre acreditando que Deus daria um jeito e sempre acreditando em Hank também. 
— O que há de errado? — perguntou ela de imediato. Bolas! Faço o que posso para esconder, tento agir 
normalmente, mas mesmo assim ela percebe, pensou Hank. 
— Hummmmm... — começou ele a dizer. — Ainda chateado com a reunião do conselho? Áí está a sua saída, Busche. 
— Claro, um pouco. 
— Nem ouvi você chegar ontem à noite. A reunião durou até muito tarde? 
— Não. Alf Brummel teve de sair para uma reunião importante da qual ele não quis falar, e os outros, você sabe como é, apenas disseram o que queriam e se foram, deixando-me ali para me recuperar por conta própria. Fiquei por lá e orei durante algum tempo. Acho que funcionou. Senti-me bem depois. 
Ele se animou um pouquinho. 
— Para falar a verdade, realmente senti que o Senhor me confortava ontem à noite. 
— Acho que eles escolheram uma hora bem esquisita para convocar uma reunião do conselho, logo durante o Festival — disse ela. 
— E na noite de domingo! — disse ele através dos flocos de milho. — Eu mal tinha acabado de dar início 
ao culto e lá estavam eles convocando uma reunião. 
— A respeito da mesma coisa? 
— É, acho que estão apenas usando Lou como desculpa para causarem encrenca. 
— Bem, o que você lhes disse? 
— A mesma coisa, vez após vez. Apenas fizemos o que a Bíblia manda: eu procurei o Lou, depois eu e o 
John procuramos o Lou, e depois apresentamos o problema ao restante da igreja, e então nós, bem, nós o 
eliminamos da comunhão. 
— Bem, parecia mesmo ser o que a congregação decidiu. Mas por que o conselho não consegue acatar a 
decisão? — Eles não sabem ler. Os Dez Mandamentos não fazem referência ao adultério? 
— Eu sei, eu sei. 
Hank pôs a colher na mesa a fim de poder gesticular melhor. 
— E eles estavam bravos comigo ontem à noite! Começaram a jogar todo aquele negócio de não julgar 
para não ser julgado para cima de mim... 
— Quem? 
— Ora, a mesma panelinha do Brummel: Alf, Sam Turner, Gordon Mayer... você sabe, a Velha Guarda. 
— Bem, não deixe que eles o intimidem! 
— Pelo menos não me farão mudar de idéia. Mas não sei que tipo de segurança no emprego essa atitude 
me garante. Agora Mary estava ficando indignada. 
— Bem, não dá para entender o que há de errado com Alf Brummel. Será que ele tem algo contra a Bíblia 
ou a verdade ou o quê? Se não fosse essa questão, certamente seria alguma outra coisa! 
— Jesus o ama, Mary — acautelou Hank. — Acontece que ele se acha sob pesada condenação, é culpado, é pecador, e sabe disso, e gente como nós sempre há de incomodar gente como ele. O pastor anterior pregou a Palavra e Alf não gostou. Agora eu estou pregando a Palavra e ele continua a não gostar. 
Ele tem muita influência na igreja, por isso acho que pensa que pode ditar o que sai do púlpito. 
— Mas não pode, ora essa! 
— Não no meu caso, pelo menos. 
— Então por que ele não procura outra igreja? Hank estendeu o dedo, de modo dramático. 
— Essa, cara esposa, é uma boa pergunta! Parece haver um método na loucura dele, como se fosse sua 
missão na vida destruir pastores. 
— É apenas o quadro que eles pintam de você. Você não é assim! 
— Hummmm... sim, pintar. Você está pronta? 
— Pronta para quê? Hank inspirou fundo, expeliu o ar, e então olhou para ela. 
— Tivemos uns visitantes durante a noite. Eles... eles picharam a frente da casa. 
— O quê? Nossa casa? 
— Bem... a casa do nosso senhorio. Ela se ergueu. 
— Onde? — perguntou, dirigindo-se à porta da frente, os chinelos felpudos raspando na calçada. 
— Oh, não! 
Hank juntou-se a ela e, juntos, absorveram o quadro. Ainda estava lá, mais real do que nunca. 
— Ora, isso me deixa fula da vida! — declarou ela, mas agora estava chorando. — O que fizemos para 
merecer isso? 
— Acho que estávamos falando sobre esse assunto agora mesmo — sugeriu Hank. 
Mary não entendeu o que ele disse, mas tinha uma teoria própria, a mais óbvia de todas. 
— Talvez o Festival... ele sempre traz à tona o que há de pior nas pessoas. Hank tinha sua própria teoria, mas nada disse. Tinha de ser alguém da igreja, pensou. Ele havia sido chamado de uma porção de coisas: hipócrita, molóide, encrenqueiro ultramoralista. Havia até sido acusado de ser homossexual e de bater na esposa. Algum membro da igreja, enraivecido, podia ter pichado a parede, talvez um amigo de Lou Stanley, o adúltero, talvez o próprio Lou. Ele provavelmente jamais viria a saber, mas tudo bem. Deus sabia.


Um comentário:

paulo disse...

Boa noite amiga querida. Vim retribuir o carinho e conhecer este novo espaço que achei bárbaro!!! Acho que as bibliotecas ou as estantes online seriam o próximo passo na evolução dos blogs. Estou preparando alguma coisa assim para o final do ano. Conte com a minha presença neste circulo que aqui se inicia. Beijos e até breve!